Por estes dias, Óbidos cheira a livros. Novos, velhos, revisitados. O odor da ginja e chocolate ainda permanece no ar, mas a vila que quer impor-se como literária, atrai, além de turistas de máquina fotográfica em riste, escritores, autores, livreiros dos quatro cantos do país e do mundo. A Travel&Taste não resistiu a passar uma tarde cultural na vila medieval que foi Casa das Rainhas durante séculos e assistir a algumas das aulas, debates, tertúlias e mesas de oradores planeadas pela organização.

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Na passada quinta-feira, dia 22, rumámos então a oeste tendo como destino a aula de Gonçalo M. Tavares, sobre os vários tipos de cegueira na literatura e nas artes, com base no livro de José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira.

A audiência, muito diversificada, absorvia avidamente um dos mais premiados autores portugueses. Gonçalo M. Tavares, 45 anos, é escritor e professor universitário, tendo a sua primeira obra publicada em 2001. O livro mais emblemático, Jerusalém, editado em 2004, ganhou o Prémio José Saramago 2005, Prémio Ler/Millenium-BCP e Prémio Portugal Telecom de Literatura 2007.

Durante a aula falou da importância da cegueira nas Artes defendendo que “deveríamos ser todos cegos para podermos produzir as nossas próprias imagens, usando apenas a imaginação”. Falou do escritor russo Tolstói que, quase cego continuava a trabalhar, e foi cortando as pernas da sua cadeira favorita para se aproximar cada vez mais do papel, de Hermeto Pascal, músico brasileiro quase sem visão, que utiliza o que está ao seu alcance, como o próprio corpo, para produzir sons musicais. Referiu ainda a importância do ausente, como no teatro grego, em que este papel era representado por um ator que tem de estar no centro do palco mas sem fazer notar, e que, mesmo “sem papel”, é o artista mais bem pago da peça.

Outras formas de cegueira são, para ele, por exemplo, a cegueira da lógica e da objetividade pura, que nada mais deixa ver; a cegueira do progresso tecnológico – para ele muitos dos progressos são apenas retrocessos -; a cegueira da obediência, a mais perigosa de todas (veja-se o caso dos nazis); e a mais bela cegueira, que é a da paixão. “Por algum motivo fechamos os olhos quando beijamos”, refere a propósito. A desatenção é, para ele, a forma de cegueira mais banal.

A esta aula seguiu-se uma animada entrevista conduzida por Anabela Mota Ribeiro, na Tenda dos Autores, onde dezenas de pessoas poderem colocar as suas próprias questões. Anabela Mota Ribeiro seguiu, numa conversa intimista, estilo que a carateriza, uma linha das palavras mais utilizadas por Gonçalo M. Tavares nas suas obras, como Fuga, Movimento, Medo, Alegria, entre muitas outras. O escritor disse,a propósito, que “todas as palavras têm o seu peso, algumas acordam-nos e outras não nos deixam dormir”. Referiu, divertido, que “antes lia livros muito duros, de filosofia e não conseguia adormecer. Agora leio Cebolinhas e Mónicas”.

Mia Couto, Sidarta Ribeiro e Agualusa em debate

Ainda durante a tarde, mesmo ao lusco-fusco, juntaram-se na Tenda de Autores um animado e culto trio. Mia Couto, 60 anos, escritor moçambicano inúmeras vezes premiado, e Sidarta Ribeiro, 44 anos, conceituado neurocientista brasileiro, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, também autor de algumas obras, moderados por José Eduardo Agualusa, escritor angolano, 54 anos.

O tema em debate era aliciante: Ciência e Literatura, falando-se de como a ciência alimenta a ficção e vice-versa, o mecanismo dos sonhos e da memória e sobre o uso de substâncias alucinogénias na criação literária. A mistura não poderia ter sido mais explosiva e os três participantes não desiludiram a assistência que deu fortes gargalhadas com o sentido de humor com que se desenvolveu toda a conversa.

A parte mais animada foi, sem dúvida, a questão do uso de vários tipos de drogas na criação literária, como o álcool, café, ou outras drogas mais fortes. Sidarta Ribeiro disse a propósito que cada um escolherá a forma como se sente mais criativo e o que funciona para si, ao que Mia Couto respondeu gracejando que a sua droga era o açúcar. “Até imagino o que vai aparecer amanhã nos jornais”, brincou o escritor moçambicano no fim de toda a discussão lançada à volta do uso destas substâncias na criação artística.


Data: até 25 de outubro | Local: Vila de Óbidos | Preço: 14€ (passe diário de seg. a qui.); 17€ (passe diário de sex. a dom.) | + info